O Espírito Santo e o fenômeno das línguas



A Igreja compreende a existência do dom de línguas como descrito na Bíblia, mas a natureza e a importância deste dom são continuamente discutidas.

Para uns falar em “línguas estranhas” é uma evidência definitiva da presença do Espírito Santo na vida do crente, sem a qual não há profundidade em sua experiência espiritual. Para outros, o dom de línguas foi algo temporário e limitado às primeiras décadas da era apostólica. Acreditam que a finalidade deste dom, como de outros, era de apenas servir como sinais naquele período, não sendo mais necessário para os nossos dias (1 Co 13:8). Muitos que pensam assim (não são todos) desprezam, caçoam, criticam e até atribuem tal manifestação a histerias emocionais e a demônios.

É possível que não cheguemos a uma conclusão comum, o que deveríamos porque a verdade bíblica é uma só. É que para isso temos de submeter à avaliação bíblica interesses e convicções já formadas historicamente em nossas experiências religiosas, e nem sempre há esta disposição em todos. Mesmo assim é necessária esta discussão, até porque apenas 1 Coríntios 12 a 14 trata do assunto na tentativa de regulamentar o uso deste dom e prevenir a Igreja de seu uso indevido. Em todo o restante do Novo Testamento não há discussão deste assunto, mas uma tremenda ênfase sobre o amor que é o assunto central de Paulo em 1 Coríntios 13, o capítulo que se encontra entre 12 e 14, como um elo. Sendo assim, quaisquer que forem nossas conclusões sobre o tema, continuaremos sendo filhos de Deus, unidos pela fé em Cristo, no qual devemos de estar “arraigados e alicerçados em amor” (Ef 3:17).


1. As línguas, de acordo com a narrativa de Atos 2:1-21, serviram para sinalizar o início da nova era pela qual os mistérios de Deus foram revelados, pelo Espírito Santo, com respeito a Cristo, à Igreja e pela Igreja ao mundo (Cl 1:26-27).

a) Há um paralelo entre a entrega da Lei de Deus a Moisés e o ocorrido em Jerusalém no “dia de Pentecostes” em Atos 2:1-4. A entrega da Lei de Deus a Moisés marcou o início de uma nova era na história de Israel a partir da qual ele seria identificado como povo de Deus por conhecer: quem Ele é (Êx 20:1-2) e os termos da Sua aliança (Êx 20:3-17 cf. Dt 5:1-21), com base em promessas eternas. Em resposta, o povo deveria obedecer a Seus mandamentos. Um dos benefícios desta obediência seria a santa distinção dos demais povos da terra. Neste dia houve trovões, relâmpagos, soar da trombeta e o topo do monte tornou-se fumegante: “e o povo, observando, se estremeceu e ficou de longe” (Êx 20:18). Todos estes sinais representaram a presença de Deus que falava com Moisés em meio de todos eles (Dt 5:22-24). Em Jerusalém, nos dias dos apóstolos, logo após a ascensão de Cristo que consumou toda a Sua missão, houve som e chamas, não no cume do monte Sinai, mas no “cenáculo” (At 1:13 e 2:1), local da última ceia com Cristo encarnado. O som não foi de um “clangor” de trombeta (Êx 19:19), mas como de um vento impetuoso vindo do céu (At 2:2). O fogo (Êx 19:18) agora não estava no topo do monte envolvendo um homem: Moisés, mas dividiu-se e foi distribuído “sobre cada um” e todos tornaram-se testemunhas (At 1:8 cf. 2:11). Antes, Moisés fora o porta-voz das grandezas de Deus a toda congregação de Israel (Êx 19 e 20:22), agora, todos “cheios do Espírito Santo” passaram a falar das grandezas de Deus, as quais foram ouvidas e compreendidas por povos de diversas regiões (At 2:9-11). Estes se encontravam “perplexos” e “atônitos” (At 2:6-7, 12), admirando os sinais e o milagre de ignorantes falando com tamanha sabedoria questões divinas. Semelhante às reações do povo no pé do monte Sinai cheios de temor (Êx 20:18-20). A lei outrora gravada em tábuas de pedras (Êx 34:1), agora são gravadas nos corações humanos pelo Espírito Santo, assim como sinalizado no Antigo Testamento (Pv 3:3-4 e 7:1-3).

b) Este texto (Atos 2:1-4), embora seja muito usado para defender o falso ensino quanto a necessidade de falar em outras “línguas”, como sinal da presença do Espírito Santo, não é o mesmo fenômeno descrito em 1 Coríntios 12-14. Apesar da palavra grega (glossolalia) utilizada para traduzir “línguas” em ambos os textos, em Atos o fenômeno não é o mesmo descrito em 1 Coríntios (um dom espiritual) que necessitava de intérpretes, pois todos entenderam segundo as suas “próprias línguas” - idiomas (At 2:11). Lucas, autor de Atos dos Apóstolos, estava apenas interessado em demonstrar os sinais que naquele dia inauguraram a era cristã, os quais marcaram o tempo da nova aliança que Deus estabeleceu por meio do Seu Filho, conforme se confere na profecia de Joel 2:28-32, atestada pelo apóstolo Pedro em Atos 2:14-21 e registrada pelo autor do livro de Atos: 2:1-13 e 37-41.


2. As línguas, de acordo com 1 Coríntios 12 a 14, devem servir para edificação da Igreja e em harmonia dos demais, sem menosprezar a prática do amor de uns para com outros. Assim como os demais, tal dom deve ser exercido com “decência e ordem” (1 Co 14:40).

No texto de 1 Coríntios 12 a 14, tratando da unidade da igreja e ordem no culto, Paulo passa a ensinar e regulamentar o uso dos dons, especialmente um que estava causando enorme confusão: o dom de línguas[1]. O fenômeno das “línguas” é considerado um cumprimento de profecias véterotestamentárias (At 2:16-21 = Jl 2:28-32; 1 Cor 14:21 = Is 28:11-12) como sinal da nova era da graça salvadora inaugurada pela manifestação de Jesus, o Cristo.

a) A citação de Isaías 28:11-12 que Paulo faz, originalmente tratava de um idioma humano estrangeiro, segundo o contexto, cujas implicações são negativas (sinal de julgamento). Paulo usou como exemplo a referência de Isaías em sua carta para dizer que os descrentes, ao entrarem na igreja não podem entender tal experiência espiritual (1 Co 14:22-23). É possível que sua intenção tenha sido dizer que se todos falassem em línguas na presença de descrentes, sem ninguém para interpretar, ela poderia ser submetida a um juízo de Deus.

b) Falar em “línguas” era uma experiência entusiasmada de orações, louvores e ações de graças; porém, individual, privativa (1 Co 14:14-17). Por isto Paulo orienta a resguardar-se no culto público para que não haja confusão (falta de entendimento e desordem) e a priorizar o mais importante: a edificação de todos na igreja que só é possível por palavras da profecia, compreendidas por todos (1 Co 14:18-19, 24-25), as quais operam graciosamente ao convencer os descrentes do pecado, levá-los ao arrependimento e a verdadeira adoração.

c) Não é possível afirmar com segurança que Paulo tinha este dom espiritual quando disse: “... falo em outras línguas mais do que todos vós” (1 Co 14:18), porque ele falava outros idiomas como latim, grego e hebraico, “e assim servia a Jesus Cristo como um missionário cosmopolita”[2]. É possível que a intenção de Paulo tenha sido comparar a capacidade de falar muitos idiomas sabendo o que está falando e cuja interpretação dá sentido a quem ouve, com a experiência de falar em línguas com seu devido entendimento, seja ele pessoal ou coletivo (1 Co 14:6-12 e 19). Para ele, o dom de falar em “línguas” é dado pelo Espírito com a única finalidade: edificação, pessoal ou coletiva. Não havendo sentido, compreensão, lucidez para produzir edificação, tal comportamento deve ser corrigido, conforme ele mesmo recomenda: 1 Coríntios 14:26-28.


CONCLUSÃO:

Em síntese, as “línguas” são inferiores à profecia (1 Co 14:1-5), não havendo entendimento do que se está falando, não nutrem, nem edificam a pessoa e nem a igreja (1 Co 14:6-19), e nem alcança os descrentes com a clara mensagem de salvação (1 Co 14:20-25). Portanto, deve haver interpretação para a igreja em cultos públicos, do contrário não deve haver sua manifestação pública (1 Co 14:26-28). Sendo assim, a ordem nos cultos públicos deve estabelecida, observada e mantida (1 Co 14:29-38).

Reconhecendo, contudo, sua origem divina e seu valor, Paulo encerra este tema com as seguintes palavras: “Portanto, meus irmãos, procurai com zelo o dom de profetizar e não proibais o falar em outras línguas. Tudo, porém, seja feito com decência e ordem” 1 Coríntios 14:39-40.



Com amor,
Ericson Martins
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[1] A palavra “línguas” é a tradução da palavra grega γλῶσσα (gloce-sah', “glōssa”). Na Septuaginta, das 160 ocorrências, 100 delas representam o sentido de “língua” como órgão físico (Jz 7:5), “idioma” como um dialeto (Gn 10:5) e “linguagem” como meio pelo qual o homem entra em relacionamento com seu próximo (Gn 11:7). No Novo Testamento”, semelhantemente, glōssa caracteriza a “língua” como parte do corpo (Lc. 16:24), como “idioma” ou “dialeto” (dialektos) e “fala” ou “linguagem” (1 Jo 3:18). Fonte: DIT-NT e BibleWorks 8.
[2] KISTEMAKER, Simon. 1 Coríntios. São Paulo-SP: Editora Cultura Cristã, 2004 (p.688).

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